Page 107 - Da Terra
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PRIMEIRA CURA LEVEDURA
Nasci dentro das vinhas, antes da voz humana haver adquirido forma e os sons brilharem no Os sessão a minha maior dor de cabeça. Não suporto os ses, porém não sobreviveria sem os ses. Grande
ar como sinais rupestres desenhados pelo hálito dos animais. Éramos dois irmãos e meu pai parte dos nossos problemas reside nos ses, assim como quase todas as soluções para esses mesmos
influiu a gente a fazer horta, para que fixados ficássemos à infância das terras e nelas problemas. Dei-me mal com os ses logo à nascença. Um parto trabalhoso levou a parteira a uma hipótese que
criássemos raízes. Desbravámos milheiros de vinhedo esgaravatando com as unhas, resultou em osso par do. Se não me vesse quebrado o braço, talvez eu ainda hoje es vesse entalado na
mergulhando os dedos no estrume, cavando à altura quase de um homem para que os porta do mundo. O mais certo seria estrebuchar um pouco e depois ir-me desta para melhor em aflita
bacelos vingassem no meio das tempestades. Quando era para a cava, meu pai me a quatro sufocação. Deu que nasci roxo. Meu pai, olhando-me incrédulo (lembro-me como se fosse hoje), perguntou
ou cinco homens a marcarem ritmo. Um deles chamava-se Noé, foi agricultor e o primeiro a se eu seria preto. E se fosse? Lá estão os ses a perseguir-me. Desde que o ar me entrou nos pulmões que os
cul var vinha neste mundo. Certa ocasião bebeu mais do que o aconselhado, ficou bêbedo e ses me perseguem. Preciso dar cabo de todos os ses. Resta saber se terei tempo. Ainda hoje, sentado a olhar
despiu-se dentro da tenda onde dormia. Um dos filhos aconchegou-o, o outro denunciou-o, ao fundo a baía e o sol que sobre ela ressonava, com as histórias de amor de Robert Walser ao colo, eu
e vem daí a pior das maldições que é assis r à cisão de uma família. Foi na criação do mundo, pensava no que teria sido a minha vida se não vesse sido o que é. E ao pensar nisto imaginei-me longe,
antes ainda da voz humana haver adquirido forma e os sons brilharem no ar como sinais naquele lugar longínquo onde a vista se perde, a contar pelos dedos todos os ses da minha parca existência.
rupestres desenhados pelo hálito dos animais. Releio-me e não gosto de nada, olho-me ao espelho e detesto-me. Espanta-me o amor-próprio por aí exibido
como broches de pechisbeque. Aprendi a lidar com a insa sfação socorrendo-me da indiferença. Quero ser-
Tanto eu como meu irmão trabalhámos desde cedo com bois, um a encher, outro a
me indiferente, não me levar a sério, mas o reflexo devolvido pelo espelho é execrável. Vou cumprir mais um
descarregar. Éramos dois. Ouvíamos o toque de ordem dos homens e respondíamos como
ano de vida com a sensação de que as únicas coisas válidas que fiz são as que ficaram por fazer. Admiro a
pardais a cantar nos telhados. Eh pau, vira bacalhau, eh pau, vira bacalhau. E nisto o zuído das
autoconfiança dos outros, a vaidade que têm em si mesmos e nos seus feitos, mas não consigo invejá-los.
abelhas trazia ideias e a gente quedava a cogitar nas línguas diariamente perecidas.
Não invejo ninguém porque a todo o momento sou lembrado de que nada valemos, a vida é este instante
À velocidade de 365 línguas esbanjadas por ano, prevíamos a ex nção da fala num futuro
fugaz e efémero a pestanejar nos rostos apagados de quem por acaso ama, por acaso odeia. Tudo quanto
próximo. Talvez possamos entender-nos melhor quando não houver língua com que
façamos para contrariar essa lei, almejando a memória eterna com feitos heróicos e criações sublimes,
comunicar, quando todas as palavras verem desaparecido como a nta devorada pela
afundar-se-á inevitavelmente no pântano do esquecimento. Homero ainda é falado, mas quem o conhece?
humidade no papel. Talvez saibamos por fim escutar com as mãos e tocar com o coração e
Quem sabe quem foi ou o que foi? E de que lhe vale o nome repe do ao longo dos séculos? De que vale tanta
ouvir com o silêncio dos olhos envelhecidos. Faltam epitáfios aos lugares que se viveram,
boca cheia com Jesus Cristo em corpos sem estômago nem alma? Para quê servir de exemplo neste mundo
dizia meu irmão. E no futuro víamos acontecer a vide após a cava, e após esta a raspa, a redra,
sem emenda? Seja como for, há muito que morri. Por isso mesmo resolvo homenagear-me. A memória que
e enxofrávamos os grelos para que as pragas não viessem a entrar com as uvas aumentando a
tenho de mim é a de um palhaço com rosto sério diante de um espelho. É uma memória pobre, bem sei, mas
sede. Era no mês de Maio a primeira cura, antes da voz humana haver adquirido forma e os
ajustada ao som da chuva a bater contra o vidro da janela. Os amigos enviam-me mensagens, dedicam-me
sons brilharem no ar como sinais rupestres desenhados pelo hálito dos animais.
poemas, tudo para me fazerem lembrar de como sou débil por nunca - ou quase nunca - me lembrar do dia
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